quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Penélope

Conto
Dalton Trevisan

Na rua de casas iguais morava, há muitos anos, um casal de velhos. Ela o esperava, costurando na cadeira de embalo da varanda e, quando ele vinha pela rua, com um pacote no braço, descia, de chinelos, os dois degraus da varanda e lhe sorria, com o portão aberto. Cruzavam o pequeno jardim e, apenas na porta, por causa dos vizinhos, mas ainda antes de entrar, ela lhe erguia a cabeça, sem nenhum fio branco, e ele a beijava na testa. Estavam sempre juntos, lidando no seu quintal, ele com as couves, ela com sua coleção de cactos. Quando deixavam aberta a porta da cozinha, os vizinhos podiam ver que ele enxugava a louça para a mulher. E, aos sábados, saíam para o seu passeio diante das vitrinas, ela, gorda, ainda bonita, de olhos azuis e ele, magro, baixo, de preto. Nas noites de verão, ela usava vestidos brancos, de pernas nuas, ele não, sempre de preto. Havia um mistério na vida deles, que nenhum vizinho conhecia. Sabia-se vagamente que os filhos tinham morrido num desastre, há muitos anos. O casal de velhos abandonou tudo, casa, túmulos, bichos e se mudara para aquela cidade, naquela rua. Eram os dois, sem cão, gato, passarinho, nem mesmo galinhas. Tinham medo de se afeiçoar a qualquer coisa. Algumas vezes, na ausência do marido, ela trazia ossos para os cães vagabundos que cheiravam o portão. Quando engordavam uma galinha, a mulher se enternecia por ela e não tinha coragem de matá-la. Então, o velho desmanchou o galinheiro e, no seu lugar, plantou uns pés de couve. Arrancou a única roseira que crescia num canto do jardim; nem a uma rosa se atreviam a dar os seus restos de amor.
Afora a viagem, que faziam uma vez por ano para visitar o túmulo dos filhos, não saíam de casa, o velho fumando seu cachimbo, a velha trançando as agulhas de tricô, a não ser no seu clássico passeio dos sábados. E foi num sábado que, ao abrir a porta, eles acharam a seus pés, uma carta. Era estranho, porque ninguém lhes escrevia, os dois sozinhos no mundo, e confabularam antes de se decidir a abri-la. Era um envelope azul, sem qualquer endereço. A mulher propôs rasgá-lo, sem ler. Já tinham sofrido demais. Ele respondeu que ninguém podia mais fazer-lhes mal. Não queimou a carta, não se apressou de abri-la, deixou-a sobre a mesa. Sentaram-se um diante do outro, sob o abajur azul da sala, ela com seu tricô, ele com seu jornal. Às vezes, ela curvava a cabeça, mordendo uma agulha na boca e com a outra contando os pontos. Quando cbegava ao fim, tinha de contar a linha de novo: pensava na carta sobre a mesa. O homem lia com o jornal dobrado, no joelho, e leu duas vezes cada linha para entendê-la: pensava na carta sobre a mesa. O seu cachimbo apagou, não o acendeu, os olhos parados na mesma notícia, ouvindo apenas o seco bater das agulhas entre os dedos da mulher. Então, pegou a carta e abriu-a. Achou um pedaço de papel dobrado, com duas palavras: cOrNo MaNsO, escritas com grandes letras recortadas de jornal. Nada mais, data ou assinatura. Entregou o papel à mulher que, depois de ler, o olhou. Nenhum falou. A mulher se ergueu, segurando a carta na ponta dos dedos. Onde é que você vai? o homem perguntou. Queimar... ela respondeu. Não, ele disse. Dobrou o papel dentro do envelope azul e guardou-o no bolso. Juntou para a mulher a toalhinha que tinha caído no chão e continuou a ler o jornal e em cada linha, aquela noite, leu as duas palavras da carta.
Não estava mais certo de que ninguém podia fazer-lhes mal. Antes da mulher se erguer e guardar a cestinha com os fios e as agulhas, segurou-lhe a mão para consolá-la: aposto, minha velha, disse, que a mesma carta foi jogada sob a porta de todas as casas da rua. As vozes das sereias cantam ainda no coração dos velhos? Nem mesmo um pobre casal de velhos estava a salvo. Haviam-lhes tirado os filhos, os bichos, a cidade. Agora, queriam separá-los um do outro.
O homem esqueceu a carta no bolso e passou-se outra semana. No sábado, de volta do seu passeio, antes de abrir a porta, sabia que ela estava ali, azul sobre o capacho. A mulher pisou na carta, fingindo que não a via. Ele a juntou e guardou no bolso. Quase no fim do serão, sem erguer a cabeça da toalhinha, contando sempre a mesma linha, ela perguntou: você não vai ler a sua carta? Olhava-a, fingindo que lia o jornal, admirando-lhe a bela cabeça, sem nenhum cabelo branco, os olhos que, apesar dos anos, eram azuis como no primeiro dia. Eu já sei o que diz, ele respondeu. Então por que não a queima? É um jogo, minha velha, disse, mostrando o envelope azul entre os dedos: nenhum sobrescrito e fechado. Rasgou-o numa ponta e tirou o papel dobrado: duas palavras, as mesmas, nas letras recortadas de jornal. Soprou o envelope, sacudiu-o sobre o tapete, mais nada. A mulher tricoteava, como se não visse a carta. Ele a guardou no bolso, com a outra e continuou a ler em cada linha do jornal aquelas duas palavras. Ela não lhe perguntou, como se soubesse. Tinha o rosto oculto pela sombra do abajur. O homem reparou que ela desmanchava um ponto errado na toalhinha. Eram os dedos que tricoteavam ou as mãos que tremiam?
Ele acordou com dor de cabeça, no meio da noite, levantou-se da cama e foi beber água no filtro. Afastou a cortina e, na rua deserta, viu na sombra dum muro, o vulto daquele homem. Ficou ali, com a mão crispada na cortina, até o homem ir-se embora. Deitou-se, de costas para a mulher, (sabia que estava acordada e de olhos abertos para ele), imaginando quem seria o homem na sombra do muro. E pensou, pela primeira vez, se a carta não podia ser para ele mesmo.
De manhã, esqueceu a ideia e, deitado na cama, observava de olhos meio fechados a mulher, que se vestia para ir às compras. Diante do guarda-roupa, ela escolhia um vestido. Os seus vestidos brancos a deixavam mais gorda. Esperou-o para tomarem café juntos, como todas as manhãs e, quando ela fechou a porta, foi olhá-la pela janela. Era ela mesma, a sua mulher. O homem se sentiu envergonhado e fechou os olhos, dizendo: minha velha, me perdoe... Quando os abriu, notou que a mulher olhava para a janela, ainda que não pudesse vê-lo, atrás da cortina. Por que olhara a janela? Para dar-lhe adeus, se ele ali estivesse ou para saber se desconfiava dela?
No sábado seguinte, quis propor-lhe ficarem em casa, de luzes apagadas e surpreenderem o autor das cartas. Ao vê-la tão alegre, porque iam passear, não teve coragem e saíram. Durante o passeio pensou o tempo todo se era apenas ele que recebia as cartas. Não podia abordar um dos vizinhos no portão e perguntar-lhe aquilo. As casas da rua, de aluguel, eram todas iguais. Podia ser engano, o envelope não tinha endereço. Se, ao menos citasse nomes, horas, lugares... Quando abriu a porta, lá estava ela: a carta azul. Desta vez, não a leu diante da mulher. Guardou-a no bolso, junto com as outras e pôs-se a ler o seu jornal, sob o abajur. Quando virava as páginas, surpreendia o rosto da mulher debruçado sobre as agulhas. Era uma toalhinha difícil, porque há meses trabalhava nela. Como se lesse no jornal, ele lhe contou a história de Penélope, que desfazia de noite, à luz das velas, as linhas trançadas durante o dia, para ganhar tempo dos seus pretendentes, esperando a volta do senhor seu marido. Pela primeira vez, pensou se Penélope não teria enganado ao marido ausente. Para quem era a mortalha que ela bordava? Teria continuado a trançar suas agulhas após a volta de Ulisses? Homero não fala. Nem a mulher, que não perguntou sobre a carta.

ANÁLISE DO CONTO
Conta a lenda grega que durante a ausência do marido, Penélope – esposa de Ulisses e mãe de Telêmaco - foi pedida em casamento por diversos pretendentes, prometendo escolher um deles logo que concluísse a peça de bordado que estava tecendo. Acontece que todas as noites ela desfazia o trabalho realizado durante o dia, adiando dessa maneira, indefinidamente, a decisão que os candidatos à sua mão aguardavam ansiosos. E se assim procedia era porque, quando seu esposo partiu para a guerra de Tróia, confiou-lhe a guarda do reino da Ítaca, pedindo-lhe que caso não retornasse, ela não se casasse enquanto Telêmaco fosse jovem.
É com base nessa lenda que Dalton Trevisan escreve o conto “Penélope”, incluso na obra “Novelas nada exemplares”. O enredo gira em torno de um casal de idosos que tem sua vida rotineira abalada por uma série de cartas anônimas que resultam no ciúme paranóico do marido e no suicídio da mulher. O texto é uma intertextualidade com a personagem Penélope, não só pelo nome do conto e da personagem, mas, sobretudo, pela simbologia da fiação. O autor vale-se do mito de Penélope para reinventar a história por meio da inversão irônica e criando uma nova situação condizente com os rumos da sociedade e do homem moderno.
Apesar de Trevisan mostrar o lado funesto e inseguro do ser humano, o autor o faz de uma maneira sutil, pois ele não aponta, não culpa e nem defende o marido por seu ciúme doentio, ele limita-se a apresentá-lo. A apresentação “sem juízo de valor” do drama do marido chega ao leitor pela voz de um narrador onisciente, que penetra na consciência da personagem de tal modo que, em certos momentos, não fica evidente se é a voz do narrador ou o pensamento do marido: “Sábado seguinte, durante o passeio, lhe ocorre: só ele recebe a carta? Pode ser engano, não tem direção. Ao menos citasse nome, data, um lugar.”
A narrativa apresenta o processo de construção do ciúme que vai do fluxo de consciência e da imaginação do marido aos acontecimentos concretos: a série de cartas anônimas deixadas na porta do casal, todos os sábados, enquanto seguiam para o passeio costumeiro. Entre a evidência das cartas e a incerteza da traição, o narrador acompanha o conflito do marido e penetra em seu inconsciente afetado pelo ciúme, mas deixa a mulher numa redoma de mistério.
Os pensamentos de Penélope não são conhecidos já que não é narrado o ponto de vista da mulher. Na maioria das vezes, ela aparece tricotando, com poucas falas durante o enredo. São os ciúmes do marido que indagam as atitudes da esposa: “Voltando as folhas, surpreendia o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recordou a lenda de Penélope, que desfazia de noite, à luz do archote, as linhas acabadas durante o dia e, à espera do marido, assim ganhava tempo de seus pretendentes. Calou-se no meio da história: ao marido ausente enganara Penélope? Para quem a mortalha que trançava? Continuou a estalar as agulhas após o regresso de Ulisses?”

O conto é análogo à lenda pelas associações entre as duas personagens que se chamam Penélope e igualmente aparecem relacionadas às fiandeiras, mas se distanciam pela oposição crucial entre vida e morte. Se no mito o que está em jogo é o amor que leva à vida conjugal, no conto é a morte e a desconfiança que provoca a fatal separação do casal.
O ato de fiar representa um eterno retorno pelo processo de tecer e desfazer o trabalho começado e interminável. A escolha de Penélope por desfazer à noite o que fez durante o dia garante-lhe tempo para fabricar suas próprias defesas contra o destino imposto pelos outros. Também no conto, Penélope é uma tecelã e decide o momento em que o trabalho ficará pronto em que cortará os fios que a prendem à vida, determinando a ocasião de sua morte.
Porém, ao contrário do mito, Penélope não suporta a longa espera, o tempo em que o marido “retornaria” a si, superando o ciúme e reconhecendo sua fidelidade. Antes, decide por fim ao drama, sendo senhora de seu destino ao cortar os fios que a ligam à vida, embora ainda dê um tempo ao marido, pelo processo de fazer e desfazer a toalhinha. Ao fazer isso, ela torna-se uma espécie de fiandeira que tece, mede e corta seu destino. E é por ser uma fiandeira que ela embaralha a vida do marido, pois ele estará condenado ao remorso e à culpa pelo suicídio da esposa, já que as cartas prosseguem após a morte dela: “‘Fui justo’, repetia, ‘fui justo’ –, com mão firme girou a chave. Abriu a porta, pisou na carta e, sentando-se na poltrona, lia o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.”

Assim como no mito, Penélope tece/borda uma toalhinha, fazendo e desfazendo pontos, num trabalho que exige tempo e paciência. Contudo, se no mito, ao bordar a peça “interminável” Penélope perpetua o amor ao marido que está longe, no conto, Penélope tece, perto do marido, a mortalha para si mesma e da separação eterna: “Entrou na sala, viu a toalhinha na mesa – a toalhinha de tricô. Penélope havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia”.
O conto de Dalton Trevisan faz uma inversão, resgatando e se afastando da lenda grega, ao propor um mito às avessas, em que se observa, em vez da fortaleza conjugal, a fragilidade dos laços matrimoniais e do ser humano.

Claudiana Soerensen
http://clau-carpeomnium.blogspot.com/2009/06/penelope-tece-propria-morte.htm
Acesso: 11/11/10

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